Levantando a bola dos direitos humanos com arte

Um mergulho na arte de Gustav Klimt e sua obra Jurisprudentia – traduzindo seria “ciência do direito”

Luiz Otávio Ribas – pesquisador da UERJ na área da sociologia política, doutor em direito pela UERJ e blogueiro

Publicado no JOTA, 06 fev. 2019

A arte inspira a reflexão crítica com tal força que levantaria do chão os direitos humanos num só impulso. No momento da cultura jurídica nacional em que mais os conceitos desenvolvidos nesta área de estudo seriam úteis para eventuais explicações e posicionamentos, coincide com o ostracismo e a irrelevância do tema em muitos currículos dos cursos de graduação e pós-graduações, assim como em escolas preparatórias de profissões jurídicas.

Ou pior, uma perseguição às pessoas que se dedicam ao estudo da teoria crítica do direito como se fosse o antro da doutrinação que precisaria ser erradicada. Num período em que os linchamentos só crescem, pré-julgamentos, sentenciamentos sumários, caberia um mergulho na arte de Gustav Klimt e sua obra Jurisprudentia – traduzindo seria “ciência do direito” ou simplesmente “Direito”.

Uma reprodução ampliada de uma das únicas fotografias preto e branco encontradas da pintura original hoje se encontra no prédio principal da Universidade de Viena, na Áustria. A original, pintada por Klimt em cores, em tinta óleo e lâminas de ouro, na sua “Fase de ouro”, entre 1899 e 1907, com dimensões de cerca de 3 por 4 metros, foi queimada pelos nazistas no final da Segunda Guerra Mundial, em 1945. As múltiplas e complexas mensagens que podemos extrair desta obra se confundem também com o próprio destino que ela teve historicamente. Além de destruída, a pintura foi rejeitada pelo governo que a encomendou.

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José Rodrigo Rodriguez, no artigo “Direito, figura do ódio” refletiu sobre esta obra e sua possível inspiração na mitologia e teatro gregos. Klimt poderia ter retratado as três Erínias, personificação da vingança, na obra de Ésquilo, representando o rancor, o castigo e sua dimensão implacável e infindável. Eram forças primitivas da natureza que atuavam como vingadoras de crimes, como o matricídio, reclamando com insistência o sangue parental derramado, só se satisfazendo com a morte do homicida. Também eram chamadas de Eumênides, bondosas ou benevolentes, eufemismo usado para evitar pronunciar o seu verdadeiro nome, por medo de atrair sobre si a sua cólera. Em Atenas, usava-se apenas o eufemismo, como deusas veneradas. Mas isto antes do julgamento de Orestes.

A peça de teatro de Ésquilo, apresentada pela primeira vez em 458 a.c., intitulada “As Eumênides”, faz parte da trilogia Oresteia. Orestes (que matou a própria mãe em vingança da morte de seu pai), Apolo (o primeiro advogado) e as Erínias (ou Eumênides) vão ao Areópago (nome do conselho que se reunia num lugar alto em Atenas) para serem julgados (no primeiro julgamento da história) pela deusa Atena (ou Minerva) e os atenienses. A questão é se o fato de Orestes ter assassinado a própria mãe, tornaria-o merecedor do tormento infligido pelas Erínias.

A votação, num júri formado por doze cidadãos atenienses, terminaria empatada. Atena, então, proferiria sua sentença decisiva, declarando Orestes inocente, naquele que foi o primeiro julgamento da história. Como na mitologia romana Minerva era a deusa da sabedoria, o voto de Minerva corresponde até hoje à escolha sábia ou certa de alguma coisa. Seria a poderosa solução de Orestes, onde Atena justifica a força de Zeus na Lei razoável e a força paternal pela Lei matriarcal da vingança pelo sangue (SCHORKE apud FLIEDL, 1992).

Uma das tensões que salta aos olhos na pintura é a figura do ancião na posição de impotência perante as três figuras femininas, trazendo uma ambiguidade do sexo como castigo ou concretização (NÉRET, 2015). Kraus, em outra leitura, considera que o conflito psicossexual entre o artista e a sociedade estaria patente na representação impregnada de medo da ameaça do homem pela natureza instintiva da mulher, o que seria justamente o ponto fraco da obra, pelo fato de mostrar o ataque da poderosa instituição como um destino pessoal. Kraus critica que, para Klimt, o conceito de Jurisprudência, ou Direito, estaria reduzido às noções de crimes e penas, apanhar e torcer o pescoço (KRAUS apud FLIEDL, 1992). Conforme a interpretação de Gilles Néret, a filosofia, a medicina e o direito estariam longe de trazer a felicidade do homem. Neste sentido, talvez a arte conseguiria, pela unificação de todas as artes para a regeneração do mundo (NÉRET, 2015).

Na minha visão, trata-se da mais contundente crítica ao direito já realizada. O debate atual no Brasil sobre os direitos humanos parece também passar por dimensões psicossexuais que não resistiriam à catarse artística, o devaneio, se as pessoas se permitirem a reflexão.

Referências

FLIEDL, Gottfried. Gustav Klimt (1862-1918): o mundo de aparência feminina. Tradução de Casa das Línguas. Berlim: Benedikt Taschen, 1992.

KLIMT, Gustav. Jurisprudence (1899-1907). Estilo: Art Nouveau (Modern). Período: Golden phase. Gênero: allegorical painting. Media: oil, canvas. Dimensões: 300 x 430 cm. Localização: destruído

NÉRET, Gilles. KLIMT: 1862-1918: o mundo na forma feminina. Tradução Jorge Valente. Colônia: Taschen, 2015.

RODRIGUEZ, José Rodrigo. Direito, figura do ódio. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 105, p. 435-451, jul.-dez. 2012.

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